sexta-feira, 31 de agosto de 2007

. só eles sabiam .


O vento toca suavemente os galhos desnudos da árvore.
Ela sente. Se move. Deixa pousar.
Num movimento ilírico, permite que o vento passeie por suas dores, pelas suas formas retorcidas. É como se o vento circulasse por suas veias, por onde corre o sangue, onde pulsa o coração.
Aqui não se ouve uma só palavra. Estava tudo repleto de distintos silêncios, que caíam por cima das pessoas, que andavam com tantas pernas, tantas vozes, que sequer repararam que o vento e a árvore faziam amor, logo ali, por cima de suas cabeças.

*Para Jão*

*

Foto: a árvore e o vento (por Mariana David)

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

.Porque é um presente ou chama-se saudade.


Choveu de noite até encostar em mim.
O rio deve estar mais gordo.
Escutei um perfume de sol nas águas.

(Manoel de Barros)

*Para Lílian*

Foto: encostar no azul da tarde (por Mariana David).

. abandono do ver .


As lentes dificultavam o cair das suas lágrimas, e as fazia embaçar.
A chuva turvava tudo e a impedia de molhar a cara, pois lá estavam elas, como impecilhos para se experimentar o choro do céu.
Os beijos apaixonados vinham acompanhados de uma inevitável cegueira momentânea, pois não se pode pedir à pessoa que se beija que ela pare de respirar, muito embora sua blusa seja habitualmente transformada em meio de apagar as marcas do amor.
O que fazer quando o mundo que se vê não é o que se deveria ver? E afinal, existe uma única forma de se realizar as coisas? Será que realmente enxergamos alguma coisa? Por que tantos míopes, astigmatas, hipermétropes ? Não será uma necessidade imperiosa da natureza de colocar seres no mundo que são obrigados a verem as coisas de novas maneiras, a desenvolver outros sentidos, uma vez que a visão confunde nomes, tropeça pelos caminhos e veste a meia pelo avesso?
Ou somos azarados, condicionados a usar um par de lentes na cara, que lhe mostram um mundo que muita vezes, era melhor nem se ver. Talvez os tropeços fossem mais vantajosos quando se há tanta dor e tristeza nos corações das pessoas.
Andou pensando em abandonar os óculos, equecê-los no fundo de uma gaveta e passar a ver o mundo como ele se mostra a ela.
E sentir a chuva na cara, o beijo apaixonado e tropeçar nos sentimentos da vida.
No meio do caminho, sempre há umas pedrinhas. Pros que vêem e pros que não.

E afinal, quem vê? As lentes, ou olhos atrás das lentes?

*
Foto: Miopia iluminada (por Mariana David)

terça-feira, 28 de agosto de 2007

. a namorada do céu .



Cheguei à conclusão de que se é preciso imaginar para se poder viver de forma mais feliz no mundo. Que seríamos de nós, tão limitados no que se chama de corpo humano, se não pudéssemos criar novas formas de se enxergar a realidade, transformar as palavras, brincar com o que está pronto e acabado.

Fui, certa vez, á praia. Dia quente, ensolarado, muito banho de mar e crianças, tão magníficas, confundidas com os peixes na água. Não pude deixar de notar um menininho, de cuequinha branca, acompanhado pela irmã, que igualmente, vestia um maiô gasto pelo tempo. A menina, mais velha, ficou encantada com a minha câmera e se soltou a fazer poses e a gargalhar, depois de conferir a sua imagem congelada pela tecnologia que ela desconhecia. O garoto, alheio às modernidades e aos olhos curiosos, carregava uma pipa, que de tão rasgada, denunciava a experiência de muitos céus percorridos. Me parecia impossível se fazer voar aquela pipa, mas o menininho nem me deu bola: levantava para cima e para baixo, os bracinhos se esforçando e fazia a pipa voar. Ela subia e caía, e ele se encolhia todo, rolando de rir pela areia. Seus olhos brilhavam, me lembro muito bem, e me sentí uma tola por duvidar da capacidade do ser humano de expandir as limitações. Enxergar o mundo com os olhos do coração.Foi nesse dia que me dei conta de que a imaginação é a nossa ferramenta mais bonita para nos alegrar e trazer alegria aos dias cinzentos do mundo.

E eu ví muito bem, com esses olhos que teimam em enxergar mal, a pipa novamente tocar o azul do céu.

*
Foto: A namorada do céu (por Mariana David).

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

. deixa o inverno pra mais tarde .


Eu adoro metáforas. Uso e abuso delas, para fazer as minhas descrições, associações e pra dar um certo charme a coisas aparentemente sem graça.
Não vou aqui enumerar as minhas inúmeras metáforas. Vim para escrever sobre outra coisa na verdade, mas tinha que render as devidas homenagens a esta ilustríssima figura de linguagem.

Andei reparando que as pessoas são como as estações. Algumas são como o inverno: frias, cinzentas, solitárias, e muitas vezes donas de uma grande beleza por trás de uma densa melancolia. Outras são como o verão: quentes, vibrantes, um tanto sufocadas de euforia. Sempre chegam invadindo, sem pedir licença, trazendo muito, muito calor. Escrevo isso porque acabo de ser invadida pelo verão, em pleno inverno (tudo bem que a Bahia não oferece um inverno clássico, mas vejam lá, peço licença poética). Quem sabe do que se trata vai entender o que vou dizer.

O verão vem, invasor nato, e chega: nos acorda bem cedo com o sol na cara e só vai embora lá pelo fim do dia. O verão queima, mas nos deixa mais bonitos. O verão pede água, tem sede, olha as mocinhas na praia e pede pra ficar. O verão tem uma beleza escancarada, e a esbanja em cada cantinho por onde passa. O mar fica mais azul, as pessoas sorriem mais, filhos são mais concebidos, há música por todos os becos, guetos e afins. O verão ilumina, é observador e quando cansa, se derrama no mar, exibido que é, esse verão.
E eu, que sou tão invernal, ando sentindo um calor danado esses dias.

Traz mais água, sim?

(Ao meu verão invasor)*

Foto: E o verão chegou ( Por João M. Meirelles).

domingo, 26 de agosto de 2007

. crianças são mais felizes .


Apresentei hoje à minha irmãzinha o Museu de Arte Moderna da Bahia, o Mam. Vimos uma exposição muito bonita, do Walter Smetak, um músico genial que criou diversos instrumentos inusitados, com sons excêntricos e muito delicados. Fui à inauguração desta exposição há uns dias atrás, mas confesso que vê-la novamente, acompanhada pelos olhos de uma criança, foi de uma delícia inexplicável.

Os instrumentos foram vistos na forma abstrata que possuem, desvinculados da obrigação de emitir o habitual reflexo sonoro, e foram anjos eólicos, ovinhos, pássaros com tetas, e tudo mais que o criador ousou de chamá-los. A minha irmã sequer estranhou os nomes, as formas. Achou tudo muito possível e me surpreendeeu com seus comentários. Um dele foi assim. Paramos em frente a um enorme instrumento, repleto de tubos com artefatos de flauta nas pontas, que deve ser tocado por várias pessoas ao mesmo tempo. Recebeu o nome de Pindorama. Minha irmã, olhou a obra enorme e largou essa: nossa, nunca tinha visto um instrumento chamado Pindorama. Agora conheço um. Ele tem o mesmo nome que o Brasil teve há muitos anos atrás, quando os índios moravam por aqui. Minha irmãzinha é demais. Inteligente ao extremo e de uma doçura que muito me ensina.

É muito bom ter os olhos livres para imaginar, sem as limitações que vamos nos impondo quando crescemos. A crinça cria, inventa palavras que não estão nos dicionários, acha que perfume tem cor, e que as cores tem cheiro. Pura sinestesia.
É bom estar com pessoas que ainda acreditam em alguma coisa, que riem com simplicidade e não exigem que o mundo seja de outra forma, que não a natural.

Foto: construtor de castelo (por Mariana David).
*
Recomendo: Exposição de Walter Smetak no Mam.
E quem tiver filhos, primos, sobrinhos e crianças interiores, todos os domingos acontece lá uma sessão de pintura ao ar livre. Só chegar, pegar um pincél e pintar.

sábado, 25 de agosto de 2007

. a idade do tempo .



Acabo de assitir ao último documentário feito por Eduardo Coutinho, chamado O Fim e o Princípio. Coutinho leva a sua câmera e olhar cuidadoso a um pequeno povoado, Araçás Azuis, nos confins da Paraíba e colhe depoimentos dos moradores mais antigos da região.
O filme corre num ritimo lento, mas creio que essa tenha sido a intenção do Coutinho. Mostrar um lugar onde o tempo prescinde dos ponteiros do relógio, um lugar onde a temporalidade está vinculada às oscilações da natureza ( chuva e sol, poeira e carvão). É um lugar distante, quase esquecido, mas onde a memória reconstrói as dores, os sonhos e as vivências de pessoas. É ela o fio condutor das narrativas, o cheiro do passado ultrapassa a película e chega até a mim, e o que muito me impressiona é a simplicidade grandiosa das pessoas capturadas pela câmera. Quem fala tudo que sabe, fica besta, teoriza um senhor de idade, de fala embolada, mas de uma clareza que talvez nem ele mesmo saiba. Num lugar marcado pela fé cega num Deus que tudo vê, escuta e decide, trabalhar na roça é visto com algo que muita saudade deixou e a morte como um fim que necessariamente chega. A maioria ali, não teme a sua chegada.
O filme me trouxe uma sensação de rugas cansadas, de vozes rasteiras, e de como o ser humano existe em inúmeras possibilidades. Há uma procura pelo que não se tem, pelo que não se é, a câmera mostra uma quase referência mítica aos personagens que procura absorver. Gostei muito da falta de pretensão, de se escolher um lugar qualquer e deixar com que as pessoas derramem as suas estórias, os seus fragmentos, com cheiro de terra batida e sol quente.
Fiquei numa nostalgia interessante, por algo que não vivi, por algo que não presenciei, mas que me trouxe mais uma nova revolução do olhar. Gostei.

Foto: As mãos da minha Vó. (Por Mariana David)

*

. das pessoas, e outros bichos afins .



Quando caminho pela rua, nutro uma especial tara em observar as pessoas. Sou praticante de um voyerismo declarado, a céu aberto e com luz do sol na cara. As pessoas, na correria obediente do que chamam de dia a dia, quase não me percebem. Aliás, posso estar também sendo observada, ter um olho mirado nas minhas estranhezas, ser o ratinho de laboratório no concreto solitário em que vivemos.


Gosto, ao esperar o sinal amigo do semáforo vermelho, de ver as pessoas esperando o momento para cruzar a rua. Gosto de ver um rapaz, roupinha de futuro executivo, mp3 devidamente ativado, conter o prazer de estar ouvindo uma música que só toca pra ele (e fico morrendo de curiosidade de saber o que se está ouvindo, o prazer quase escorrega para além fones de ouvido). As pessoas se tocam, no que eu chamo de dança dos inconscientes: as pessoas se veem, mas é como se estivéssemos todos imersos na solitude, num monólogo de mudos. Mas a cidade continua, esparramando suas cores confusas, suas esquinas delirantes, sua voz que não se faz ouvir, mas que ao mesmo tempo, nos deixa surdos.


E olho as pessoas: o casal de namorados que se beija na rua, a tia entediada num engarrafamento caloroso, os olhos de uma criança pelo vidro traseiro do carro (crianças são as mais pura forma de voyerismo: abstração do olhar), eu, tentando compreender tudo e chegando à conclusão de que é tudo muito maluco, doido mesmo, para que eu possa continuar a olhar. Mas acabo olhando, tentando descobrir porque a mocinha chora, porque o senhor de chapéu e barriga avantajada gargalha na saída da padaria. E o que, meu deus, o que aquela pessoa está fazendo no meio das pedras da praia de Ondina: palestrando com formigas?


Não tem jeito. As pessoas devem ser olhadas, capturadas. Estamos todos sujeitos às perversões e às loucuras de voyeurs descontrolados como eu.

**

Foto: Vale do Capão, por Mariana David
( porque eu também me canso de olhar).

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

. menina cor de sonho .


Um certo dia, lá estava eu, entediada com a faculdade de Direito, prestes a terminar o curso, e pensando com meus botões: não tem nenhuma criatura aqui neste curso que me dê vontade de chamar para tomar um café (eu não bebo café, só capuccino, mas acho legal as pessoas beberem café enquanto fazem hora para alguma coisa). E divagando nestes pensamentos nada jurídicos, me deparo com uma figura, vestido colorido, óculos modernoso e pensei: essa pessoa merece ser chamada para um café. Não chamei, mas acabamos engatando um papo, e conversa vai, conversa vem, descobrimos que tínhamos um francês em comum, uma tara habitual por filmes, um vício e imersões em mundos que os olhos das pessoas preguiçosas não conseguem ver. De lá, caímos em diversas formas de pulsar, auroras surrealistas, em jardins elétricos, em paraísos nada artificiais ( e andamos muito para isso!) ou simplesmente, no velho e guerreiro Mercado do Peixe, que acreditem, tem banheiro limpo e ainda fornece arco íris!
Hoje, esta linda menina, querida amiga, faz aniversário, e rendo aqui todas as minhas homenagens, reafirmo o meu amor por ela, meu carinho e de como a vida é mesmo uma boa foda: sempre dá um jeito das pessoas se encontrarem.
Talita é um dos meu melhores achados, é a minha boneca de brechó vintage, das que não se encontra por aí. Não confundam! Não é atrás de qualquer óculos modernoso ( e há tantos deles por aí) que encontramos tipos como ela.
E ela ainda tem cabelos cor de sonho. Me ganhou. Para sempre!

Parabéns, minha boneca colorida. Felicidade sempre.

E não esqueça:

Plante cores. Morda a fruta. Leve choque!

ui*

Foto: Talita auroreando, por Mariana David.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

. a bicicleta, ou essa sou eu .



Entre o presságio e o sonho
Uma janela indiscreta
por onde entra a brisa
que meus cabelos conserta

Entre o olhar perdido
e a linha reta
vejo surgir no horizonte
uma bicicleta


(Ivan Seixas)


*

Começo o meu blog me traduzindo pelas palavras de um amigo, um gênio escondido atrás de um quase sucesso.

Assumo aqui a difícil tarefa de escrever, colocar meus filhos no mundo em forma de palavras.

O título me veio ao ver esta foto, nas minhas reminiscências de um saudoso carnaval pernambucano, quando eu observava o mar de Boa Viagem ( E só observava. Tive medo dos tubarões). Há uma bicicleta lá no fundo, beirando o mar, salgando as rodas, e que só foi percebida quando o momento deixou de existir, quando ele foi congelado em pixels, graças à tecnologia e também ao olhar atento do meu querido amigo Duda, paraibano e pernambucano, com um olhar extremamente sensível às grandes miudezas.

Sou um pouco como essa bicicleta. Pequena, quase um vestígio, um fragmento que passa e só deixa a suave brisa, das coisas que passam rápido. Mas, às vezes, me demoro, e paro a bicicleta na beira do mar, faço o vento parar, a roda descansar e me entrego à grandeza de ser só um rastro de qualquer coisa no horizonte.


Estou sempre entre o presságio e o sonho*